domingo, 23 de novembro de 2025

Ferro

Parar e reagir, acionar o impacto profundo

A pele, o que não evito e ressinto

A falta ilógica do que nunca existiu

Nada é lógico em mim

Avisto de perto o sono corroído e a dança enigmática do meu sangue lento, fraco, uma pulsação quase unânime por vias estreitas e sinuosas, me lanço à força grave do instinto: te ser, ter tua vida em mim sempre transplantada, uma raiz que cobre todos os meus pés e me faz mergulhar numa fantasia tão grande quanto o impossível, já sou toda eu você e somos uma árvore frondosa. Dessa árvore caem os frutos tingidos de terra e sol que se oferecem inteiros como oblações ilícitas à sua própria existência, pois dela mesma se alimentam e me fazem saciar para sempre qualquer ingenuidade de digerir mal as ideias abstratas que você pudesse ter de mim. Assumo o descontrole, lembro que não somos árvore, terra, mato. Lembro, porém esqueço. E assim esquecendo, beijo com devoção a trágica maneira em como nos tornamos ao mesmo tempo corpo, água e pó.



sábado, 15 de novembro de 2025

Conjecturas

Abrindo caminho por entre um campo de girassóis, imagina? O vento bate de lado e sinto a vida misteriosa e confusa, uma loucura apenas sentida na carne, a dor na superfície, o profundo sendo infinito, portanto, inexistente. Se me viram do avesso volto a ser eu embutida no espírito do mundo, entrelaçada com o tempo que também não existe, uma montanha de abismos que não me espera para contar o final dessa catástrofe mínima, o furto de estar viva e, por isso, correndo perigo. Rebobina. Volta ao início onde tudo eram conjecturas de possíveis decepções, onde eu realmente estava certa, onde todos ainda estavam aqui, onde a vida não seria tão cruel. Volta, faz de conta que eu existo, também.

Estrada

Eu gosto do incontornável

Do fatalismo do fim sem limites

Para onde mais posso terminar?


quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Flash

Como às vezes, tropeçando inteira caindo madura - a manobra de arte ao esfregar teu corpo no meu e lamber teu espírito - tudo pode ser devolvido à terra antes tarde do que sempre, mas nem tudo e nem sempre, quase nunca, diriam os astros. 

O que a previsão não cogita é o falso, a peça, a muleta, o vão - todos dentro de um grande saco de invenção, a mentira de seguir vivendo como qualquer dia num dia qualquer no meio de uma praça, andando só e perdida, a imagem seca sépia de uma viagem ao fundo do poço e voltando, caducando, esquecendo dos sonhos que são a minha parte mais importante - a quem os estou entregando sem saber?

Um pano dobrado (aqui cabem as memórias), um caldo entornado (espalhamos a morte), um espirro dolorido (sim, dói desdobrar-se);

Mas nada disso é suficiente, preciso pegar ainda a carona mais rápida e isso tudo me levará ao espanto: sou tão grande e nem sabia? Me dou medo e devolvo com gentileza falsa, "tome, trema por mim" que eu já não dou conta de enxergar essas coisas gigantes ao lado de coisas minúsculas, sinto uma febre, um frio, uma lembrança.

Me arrepio e retiro os olhos de dentro, vou cuidar das plantas, vou lavar a louça, esqueço.


quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Estrela

 Aos poucos, as coisas se encaixariam em seus lugares. Isso foi o que ela disse, prometeu, sentenciou. Até agora, tudo segue em qualquer lugar menos no seu e ela segue evitando a perfeição paralítica do desejo de nunca errar. Algo como um equívoco constante para não se esquecer que existe, sei lá. Algo assim como uma fome de não saber mais nada. Eu conversei outro dia com ela e percebi que algo não estava bem certo, mas nunca sei quando é cansaço, nervosismo, chacota ou falta de vitamina. Aí, só me resta ficar bem escondida observando, eu gosto de ver o seu perfil quando finge que ninguém vê, fazendo carinho no vento ou lembrando de uma música antiga. Quando foi que deixou de ser criança e achar que estava estrelando um filme?

Inteligência Artificial

Apenas no meu estado caótico natural

Onde não me prendo a nada e no entanto estou andando em círculos

Em torno do meu sacrifício tenro

Meu descanso inusitado, construir universos

Uma visão embaçada de tudo o que há de severo a se dizer

Cavaleiros indo à morte por sua própria honra

Sem medo, eles apenas têm seu orgulho

O dia mais quente, a noite mais fria

Um olhar através da parede

Uma calma, sangria

O espetáculo de desaparecer silenciosamente de uma memória

A mumificação dos sentidos para que a lógica possa reinar

A própria lógica perdendo a noção quando encontra um outro olhar

Tudo parece normal, a vida segue sinistra e sutil, um conto único de várias facetas

Histórias atravessadas e produzidas pelo acaso, ou pela força geradora de hecatombes

Fios costurando tripas imaginárias 

E eu tomando chá

Sentada numa varanda também imaginária.



segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Jato

E se eu inventar agora o que estou pensando para depois não saber o quanto fui estúpida em achar que não deveria retornar ao precipício do qual nunca me atirei e ter em minhas mãos todas as ondas de felicidade do mundo? Felicidade às vezes é uma coisa banal que precisa de gente pra acabar e tempo pra ser percebida. Se eu não gritar aqui não grito, mas tenho um medo gigante que me esmaga praticamente o tempo todo, algo como uma angústia, se é que isso pode se configurar uma grande angústia, só angústia mesmo de existir, isso é demais pra mim. Tudo é muito grande e me sinto minúscula numa bolinha de novelo de lã bem pequenininha, dentro de uma gaveta carcomida pelo tempo e pelo sal desse mar inóspito. O ar é muito fino para me limitar então eu preciso de som. Eu preciso de barulho, ruídos muito altos que me façam esquecer que sou ilimitada. Ruídos e uma vertiginosa realidade fosforescente e brilhante, piscando na minha cara com um jeito de alerta de terremoto: aqui tudo nasce e morre e será esquecido. Aqui, novamente aqui, correndo aquele enorme perigo e sendo mil vezes a mesma repetição, mil vezes um espelho quebrado em mil, mil invenções e quase o mesmo tanto de certezas pois também preciso sobreviver. O mesmo jato que me trouxe à terra me retira aqui e ali em palavras e pensamentos e sons que me espalham, vou deixando minhas células por aí enquanto o bafo quente do infinito me revela a grande revelação sobre a minha grande ignorância. Afinal, não saber tudo pode ser uma grande vantagem, ele me diz. E some em luminosos projéteis trans etéreos que voltam para dentro de mim pelo furo do topo da minha cabeça. Já engolidos pelo meu cérebro transbordam pelo plasma e me fazem dançar sozinha no meio da sala, eu, que já fui aquele pano úmido tentando secar as mágoas do meu reflexo e agora sou só a brisa que invade a casa e me faz lembrar que uma vez achei que a parede estivesse caindo. Era só um caminhão passando pela rua que arrastou os fios e imitou uma catástrofe. 
Mas era tudo mentirinha. Eu inventei.

domingo, 26 de outubro de 2025

Atenção

Aqui tenho a multidão caótica que disfarça seu olhar em dedos tecendo novas formas de me ferir. Aqui o amor que justifica uma fuga alucinada. Aqui de fato a fuga pois não sei lidar com elogios. Aqui o susto automático ao me ver numa realidade tão enorme quanto um sonho. Aqui o salto enigmático. Aqui onde não estive e me arrependi. Aqui sigo correndo descalça pela Marechal. Aqui quem me olha e me evita. Aqui traindo o meu próprio desgosto. Aqui saltando dois degraus. Aqui, pequena e imoral. Aqui, raivosa e visceral. Aqui, intranquila, incógnita, inconteste. Um perigo.

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Pano

Logo ela falando de amor profundo

Amor verdadeiro logo ela

Aquela que se perdeu

E não sente mais pó poeira por debaixo dos olhos

Apenas um cortante dialeto luminoso: a faca da língua no chão da sala

O pano passando molhado entre os dedos

Enxuga esse fluído doce que te sangrou, querida

Enxerga que nem sempre o brilho é luz, quase sempre água

E o que reflete nela é só mesmo ela, aquela mesma

Que não fala e não faz e não sabe

Que de amor só reflexo desdobra

E de verdade só a própria aura celebra



Aquário

Quando a você me entrego

Saiba, meu amor, que é a mim que me dou inteira

E quanto mais a mim me ofereço de alma e corpo

Mais livre sou para te amar profundamente

Quando digo "profundeza" estou falando do meu, do nosso mar

Aquele incógnito onde ainda pretendo mergulhar

Um mar gigante para um dia claro, meu bem

Beba tudo, vai.