domingo, 23 de novembro de 2025

Ferro

Parar e reagir, acionar o impacto profundo

A pele, o que não evito e ressinto

A falta ilógica do que nunca existiu

Nada é lógico em mim

Avisto de perto o sono corroído e a dança enigmática do meu sangue lento, fraco, uma pulsação quase unânime por vias estreitas e sinuosas, me lanço à força grave do instinto: te ser, ter tua vida em mim sempre transplantada, uma raiz que cobre todos os meus pés e me faz mergulhar numa fantasia tão grande quanto o impossível, já sou toda eu você e somos uma árvore frondosa. Dessa árvore caem os frutos tingidos de terra e sol que se oferecem inteiros como oblações ilícitas à sua própria existência, pois dela mesma se alimentam e me fazem saciar para sempre qualquer ingenuidade de digerir mal as ideias abstratas que você pudesse ter de mim. Assumo o descontrole, lembro que não somos árvore, terra, mato. Lembro, porém esqueço. E assim esquecendo, beijo com devoção a trágica maneira em como nos tornamos ao mesmo tempo corpo, água e pó.



sábado, 15 de novembro de 2025

Conjecturas

Abrindo caminho por entre um campo de girassóis, imagina? O vento bate de lado e sinto a vida misteriosa e confusa, uma loucura apenas sentida na carne, a dor na superfície, o profundo sendo infinito, portanto, inexistente. Se me viram do avesso volto a ser eu embutida no espírito do mundo, entrelaçada com o tempo que também não existe, uma montanha de abismos que não me espera para contar o final dessa catástrofe mínima, o furto de estar viva e, por isso, correndo perigo. Rebobina. Volta ao início onde tudo eram conjecturas de possíveis decepções, onde eu realmente estava certa, onde todos ainda estavam aqui, onde a vida não seria tão cruel. Volta, faz de conta que eu existo, também.

Estrada

Eu gosto do incontornável

Do fatalismo do fim sem limites

Para onde mais posso terminar?


quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Flash

Como às vezes, tropeçando inteira caindo madura - a manobra de arte ao esfregar teu corpo no meu e lamber teu espírito - tudo pode ser devolvido à terra antes tarde do que sempre, mas nem tudo e nem sempre, quase nunca, diriam os astros. 

O que a previsão não cogita é o falso, a peça, a muleta, o vão - todos dentro de um grande saco de invenção, a mentira de seguir vivendo como qualquer dia num dia qualquer no meio de uma praça, andando só e perdida, a imagem seca sépia de uma viagem ao fundo do poço e voltando, caducando, esquecendo dos sonhos que são a minha parte mais importante - a quem os estou entregando sem saber?

Um pano dobrado (aqui cabem as memórias), um caldo entornado (espalhamos a morte), um espirro dolorido (sim, dói desdobrar-se);

Mas nada disso é suficiente, preciso pegar ainda a carona mais rápida e isso tudo me levará ao espanto: sou tão grande e nem sabia? Me dou medo e devolvo com gentileza falsa, "tome, trema por mim" que eu já não dou conta de enxergar essas coisas gigantes ao lado de coisas minúsculas, sinto uma febre, um frio, uma lembrança.

Me arrepio e retiro os olhos de dentro, vou cuidar das plantas, vou lavar a louça, esqueço.


quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Estrela

 Aos poucos, as coisas se encaixariam em seus lugares. Isso foi o que ela disse, prometeu, sentenciou. Até agora, tudo segue em qualquer lugar menos no seu e ela segue evitando a perfeição paralítica do desejo de nunca errar. Algo como um equívoco constante para não se esquecer que existe, sei lá. Algo assim como uma fome de não saber mais nada. Eu conversei outro dia com ela e percebi que algo não estava bem certo, mas nunca sei quando é cansaço, nervosismo, chacota ou falta de vitamina. Aí, só me resta ficar bem escondida observando, eu gosto de ver o seu perfil quando finge que ninguém vê, fazendo carinho no vento ou lembrando de uma música antiga. Quando foi que deixou de ser criança e achar que estava estrelando um filme?

Inteligência Artificial

Apenas no meu estado caótico natural

Onde não me prendo a nada e no entanto estou andando em círculos

Em torno do meu sacrifício tenro

Meu descanso inusitado, construir universos

Uma visão embaçada de tudo o que há de severo a se dizer

Cavaleiros indo à morte por sua própria honra

Sem medo, eles apenas têm seu orgulho

O dia mais quente, a noite mais fria

Um olhar através da parede

Uma calma, sangria

O espetáculo de desaparecer silenciosamente de uma memória

A mumificação dos sentidos para que a lógica possa reinar

A própria lógica perdendo a noção quando encontra um outro olhar

Tudo parece normal, a vida segue sinistra e sutil, um conto único de várias facetas

Histórias atravessadas e produzidas pelo acaso, ou pela força geradora de hecatombes

Fios costurando tripas imaginárias 

E eu tomando chá

Sentada numa varanda também imaginária.



segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Jato

E se eu inventar agora o que estou pensando para depois não saber o quanto fui estúpida em achar que não deveria retornar ao precipício do qual nunca me atirei e ter em minhas mãos todas as ondas de felicidade do mundo? Felicidade às vezes é uma coisa banal que precisa de gente pra acabar e tempo pra ser percebida. Se eu não gritar aqui não grito, mas tenho um medo gigante que me esmaga praticamente o tempo todo, algo como uma angústia, se é que isso pode se configurar uma grande angústia, só angústia mesmo de existir, isso é demais pra mim. Tudo é muito grande e me sinto minúscula numa bolinha de novelo de lã bem pequenininha, dentro de uma gaveta carcomida pelo tempo e pelo sal desse mar inóspito. O ar é muito fino para me limitar então eu preciso de som. Eu preciso de barulho, ruídos muito altos que me façam esquecer que sou ilimitada. Ruídos e uma vertiginosa realidade fosforescente e brilhante, piscando na minha cara com um jeito de alerta de terremoto: aqui tudo nasce e morre e será esquecido. Aqui, novamente aqui, correndo aquele enorme perigo e sendo mil vezes a mesma repetição, mil vezes um espelho quebrado em mil, mil invenções e quase o mesmo tanto de certezas pois também preciso sobreviver. O mesmo jato que me trouxe à terra me retira aqui e ali em palavras e pensamentos e sons que me espalham, vou deixando minhas células por aí enquanto o bafo quente do infinito me revela a grande revelação sobre a minha grande ignorância. Afinal, não saber tudo pode ser uma grande vantagem, ele me diz. E some em luminosos projéteis trans etéreos que voltam para dentro de mim pelo furo do topo da minha cabeça. Já engolidos pelo meu cérebro transbordam pelo plasma e me fazem dançar sozinha no meio da sala, eu, que já fui aquele pano úmido tentando secar as mágoas do meu reflexo e agora sou só a brisa que invade a casa e me faz lembrar que uma vez achei que a parede estivesse caindo. Era só um caminhão passando pela rua que arrastou os fios e imitou uma catástrofe. 
Mas era tudo mentirinha. Eu inventei.

domingo, 26 de outubro de 2025

Atenção

Aqui tenho a multidão caótica que disfarça seu olhar em dedos tecendo novas formas de me ferir. Aqui o amor que justifica uma fuga alucinada. Aqui de fato a fuga pois não sei lidar com elogios. Aqui o susto automático ao me ver numa realidade tão enorme quanto um sonho. Aqui o salto enigmático. Aqui onde não estive e me arrependi. Aqui sigo correndo descalça pela Marechal. Aqui quem me olha e me evita. Aqui traindo o meu próprio desgosto. Aqui saltando dois degraus. Aqui, pequena e imoral. Aqui, raivosa e visceral. Aqui, intranquila, incógnita, inconteste. Um perigo.

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Pano

Logo ela falando de amor profundo

Amor verdadeiro logo ela

Aquela que se perdeu

E não sente mais pó poeira por debaixo dos olhos

Apenas um cortante dialeto luminoso: a faca da língua no chão da sala

O pano passando molhado entre os dedos

Enxuga esse fluído doce que te sangrou, querida

Enxerga que nem sempre o brilho é luz, quase sempre água

E o que reflete nela é só mesmo ela, aquela mesma

Que não fala e não faz e não sabe

Que de amor só reflexo desdobra

E de verdade só a própria aura celebra



Aquário

Quando a você me entrego

Saiba, meu amor, que é a mim que me dou inteira

E quanto mais a mim me ofereço de alma e corpo

Mais livre sou para te amar profundamente

Quando digo "profundeza" estou falando do meu, do nosso mar

Aquele incógnito onde ainda pretendo mergulhar

Um mar gigante para um dia claro, meu bem

Beba tudo, vai.

Janelas

Para mim, toda a fúria 

Para meus olhos, cada paisagem apressada da janela deste trem desgovernado

Ainda no desastre, tenho tempo de admirar a beleza na explosão



domingo, 28 de setembro de 2025

Exílio

Como descobrir um segredo há tanto escondido
É que se desvelam as ondas da vida em seus súbitos descaminhos
Tudo pode virar numa fração de segundos
A história que jamais seria contada em toda tragédia humana
A história de um ser, em suas sensações inteiras e impermanentes
Comendo, sentindo, voltando aos mesmos lugares e sendo tantos outros ao mesmo tempo
Sentir é como viver um passado permanente, alegre e triste, concreto e imaginário
Na mescla concisa que é e pode ser a morte, para tudo o que um dia já provou da vida
E, se tudo morre, não há porque não evitar a ilusão de ser eterno
E seguir inventando um tempo, um espaço, um pensamento
Eu penso com meu corpo e meu corpo me pensa, eu existo e me invento
Mas sou também o que preciso neste momento
E preciso viver porque amo ou amo porque vivo ou vivo porque vou morrer
Mas tudo faz parte da grande pergunta e grande resposta dadas, a vida na sua incompletude, a incerteza do agora e do que foi
Agora já foi, mas o que será nunca chega
E só posso vislumbrar a sombra do futuro quando me assalto na comparação do que já vivi
Então, posso esquecer de tudo 
De qualquer coisa
De qualquer fato
Se ao final e começo me agarrar ao que acato como lei
A própria geração da vida nela mesma como um fim, como um fogo que se alimenta e brilha até se consumir, a natureza na natureza própria da transformação
A guerra que consome o mundo e os devoradores insaciáveis da alma do sentido do tempo
Esses cuja única fonte de poder são as nossas tristes consciências perdidas
Erráticas como os insetos em volta da luz quente que os liquida
Mas que mesmo assim retornam ao que nunca deixaram de ser, tudo
E, se também sou tudo, nada me cabe
Pois já estou completa, lotada de falta de sentido exato
Exilada




segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Explicação

Presumo um calafrio uma calmaria atrófica uma simplicidade na resolução de tudo
Tenho facilidade com essas coisas de invenção 
Sempre achei monótona a exigência de que tudo tenha que ser comprovado admitido permitido concluído analisado
Deve ser para que eu possa entender que me conheço um pouco
Deve ser o pavor de não ser nada
Deve ser a fuga quase perfeita da lisura de um erro fatal

Quem sai inventando essas coisas por aí pressente que tudo já foi inventado antes
Então não há porque ter um medo tão agudo, tão formal
Sou perpetuamente irresponsável por tudo o que já inventei
Então ainda não preciso me provar que estou errada


domingo, 21 de setembro de 2025

Auto-lembrete

 É tudo invenção

Acerto

Venho aqui devagar, como escutando minhas necessidades fisiológicas. Elogio por dentro quem não tem crises, quem vive a lisura de um exato contentamento. Ninguém vive assim, ninguém pode ser tão avesso à vida. O que pretendo comigo é um acordo nupcial: caso-me comigo se entendo a imperfeição fissurada do acerto, a soberana crise de existir. Dou voltas e voltas e sigo vivendo, mas posso morrer agora pois estou atrelada à vida como um líquen na pedra. Fisiológica, mesmo. O corpo me dita a raiva de devolver o medo ou a doçura de me envolver com o insondável. Tudo pode. Posso impor limites mas a vida sempre é quem vai me dizer até onde posso ir. E não tenho limites enquanto estiver contemplada por minha própria vontade de crescer e explodir. Explodo em jorros e já não sou matéria, nem tenho saudades da minha casa. As separações são inevitáveis assim como a terra o tempo o pólen e vida e a natureza. A natureza é inevitável.

Tirania

Me atirei de encontro a um estado seu
Ridiculamente errado e enquadrado num vazio de cores
Preto no branco, não insisto em saber mais
O que vejo já foi o suficiente para saber 
Que desprezo o jogo de vítima e ladrão

Prefiro a irritação de não me perder no engano dos outros
Prefiro a poética irritação
Do que ser engolida pelo discurso errático sem sombra de dúvidas
Um labirinto de esquemas bem desenhados
Onde sou algoz e vítima
De um trágico desinteresse pela vida



Suportável

Invento uma importância quase lúdica ao que não me interessa
É fácil ser criadora de uma realidade, quando penso nisso é tão rápido que o mundo me devora

Os flashes de uma vida infinita, não sei se vivi ou sonhei
Mas não importa, também não sei se estou vivendo ou sonhando agora
Vivo a loucura, a morte e a dúvida
Vivo tudo o que me faz mergulhar na minha própria insignificância aterradora
Sim, pois ser terrível quer dizer comer o mundo antes que ele me engula inteira ou em pedaços
O aterrorizante de ser contra aquilo que me afasta de mim mesma
Prefiro o atrito, a dor
A uma calmaria de negação do quão insuportável é viver.

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Peso

Durmo tranquila de novo
Carrego só o que não serve
Na esperança de ficar mais leve

O corpo

Meu corpo me engoliu
Alguém que saiba como sair
Me avise

Acertos

É mais interessante tudo
Do que um nada tão correto
Tão cheio de sentido
Tão concreto
Um nada certo

Dedo

Martelei o dedo

Desmaiei de dor

No fundo desfaleci

Pelas dores que eu nunca senti

Preço

A loucura que amo, a vertigem

Não ter sentido custa caro

Endoidecer

Homens

Os primórdios da minha boca
Engolindo em seco os vapores orgânicos
Das bocas imaginárias, solenes
Destilando o sono de corpos, tantos

Ando pelo chão frio e espanto
Com meu céu de quases e facas
Os homens que sonho, sempre
Em pulsares e olhos mântricos

Sou eu a rua o asfalto
Por onde pisam seus grandes sapatos
Ainda leve, sou o cântico
Que aquece seus prantos caóticos




Monólogo

Sim

É isso mesmo que ouvi de mim

Uma fuga quase perfeita

Por debaixo da lua

Diálogo

Quero transpassar o mundo 

Ser mais invisível que o sonho

Me exonerar da culpa de ser livre

domingo, 22 de junho de 2025

Céu

Estar humana às vezes me aturde
Mas, na maioria das vezes
Me enche de graça e vontade de não pensar

Estar humana me faz dormir tranquila
Já que posso deixar de estar a qualquer momento
E não poderia me agarrar a nada
Que pudesse me salvar

Estar assim, serena e só
Me faz não duvidar
Que meu estado natural é o silêncio
A contemplação do céu
O pensamento solto
A ideia livre
O esquecimento


terça-feira, 17 de junho de 2025

Desenhos

Observo a forma como me movimento entre os outros e percebo, sem surpresa, que sou uma serpente. Nem sempre venenosa, mas com uma força no ventre que pode engolir uma cidade inteira. A vida me exige um tanto de paciência comigo, mas é cansativo ter que me arrastar o tempo todo. A natureza é sábia inteiramente e eu não sou uma natureza completa, só posso conter uma frágil fração do universo que ao mesmo tempo está em tudo. Sou também um jardim com todas as suas micro diversidades de terra e sais minerais, e dependendo da estação do ano tenho o solo mais rachado mas, ainda assim, às vezes nascem uns verdinhos aqui e ali. A serpente no jardim pode simbolizar algo que sempre está ali em em meio à cor vibrante das flores, é profundo e misterioso, mas convive em harmonia com a superficialidade. Gosto de símbolos e dos contrastes que eles evocam. Me lembra que tudo pode ser interpretado.

Precipício

Ainda sobre verdades, pretendo espalhar meu corpo onde for para encontrar os limites do que se pode fazer. Nada que me digam pode conter minha experiência tátil. O que pode querer dizer: se todos dizem que cair do precipício será fatal, nunca vou acreditar. Vou lá e me atiro, ganhei uma verdade experimentada, a de morrer pela força da gravidade. Ainda assim, tudo pode ser inventado e ludibriado com o uso da linguagem, esta grande ferramenta de desdobramento da realidade, ilusionista da culpa e produtora de infinitos pensadores e filósofos que não chegaram a lugar nenhum. Rodando sobre as próprias cabeças, criando uma falsa sensação de evolução. Ok, vou parar de escrever sobre o que não conheço. Mas voltando aos limites, pressinto que algo está sendo revelado o tempo todo com a vida, seu próprio peso ou leveza, sua forma subliminar de mostrar que não temos controle sobre nada, mesmo.

Armadura

 Ainda sou a mesma, soterrada em camadas da sujeira minha, humana mesmo. Preciso desenrolar de novo o novelo que me sufoca e lentamente orientar a visão para um presente possível. Respirar, atacar a glória da autocomiseração como quem guerreia de espada contra um inimigo siamês. 

Húmus

O que o espelho da noite revela

Na sombra lúcida de um sonho desmembrado

Me encontra já viva, sem saudades do que sou


Relembrando o tempo que me nutriu de incertezas

E calçando de novo pantufas cor-de-rosa

Recebo uma revelação como quem ganha um pirulito

- Me dá, preciso do teu veneno açucarado, tua língua de ferro que me excita e humilha


Recebo o tapa na cara e, logo

Pouso sobre uma folha gigante chamada certeza

Minha nova certeza, novinha em...folha

Sobre quem vou flutuar mais um pouco

Até cair no chão da floresta

Apodrecendo


Quando tento engarrafar o que sinto, as águas do mundo escapam pelos fundos.

Redoma

As grandes revoluções são, antes de mais nada, feridas internas. O que nego hoje pode ser minha grande verdade de amanhã, por isso preciso me agarrar à libertação que é enfrentar a mim mesma. De frente para os outros e diante de mim, tendo como fundo e sustentação essa excelente redoma gigante que contém todas as mentiras do mundo, encarar a perda do controle da própria vida antes de afirmar qualquer dogma universal. Ser minúscula perante as minúcias que cada sentir individual pode conter, mas não se deixar seduzir pelo autêntico auto-engano de não saber que, mesmo que eu minta trinta, quarenta, sessenta milhões de vezes, nunca poderei fugir da lisura do tempo que revela o mecanismo de ação-reação. Os acontecimentos podem me atropelar, ainda que eu me levante e diga depois, gritando a plenos pulmões como quem pede socorro numa rodovia vazia, que a culpada serei sempre eu. Na lógica da construção caótica que faço da minha compreensão medíocre do que são relações e de como devo me comportar, nada nunca será fácil, muito menos conclusivo. Mas isso, também, pode ser uma grande verdade que me escapa.


sábado, 31 de maio de 2025

Plateia

Adoro o silêncio das atitudes implícitas
Das grandes ou pequenas negações
Das inversões majestosas da certeza
De jogos que prefiro não ganhar

Gosto de observar
Me emociono um pouco, quando vejo
Com clareza contida e genuína
A cena impecável
A insegurança triste
O pequeno rito, comer sua dor
 
Acho bonito, não vou negar

O aplauso que dou é não estar nem aí
Nem aqui, prefiro mesmo não estar em qualquer lugar
Dessa plateia abobalhada e ruidosa
Saio bem antes pra não ver o ator tropeçar

quinta-feira, 22 de maio de 2025

Não tenho bordas

Assumo o risco de perder o controle

E me preciso em paz

segunda-feira, 19 de maio de 2025

Sono

A escolha como navalha da vida nela navego sem saber para onde apontar pois sempre estou com perspectiva deslocada - me olho ao mesmo tempo em que me sou e isso não pode ser natural. É natural saber do corpo muito pouco o que produzo líquidos febres inflamações pequenas ou grandes dores. Meu corpo me identifica no tempo no espaço e no entanto estou tão fora de mim como para me parir de novo a cada instante músculos ossos estou me criando. A terra quer me comer e eu me como sabendo que sou um amontoado de células condensadas ordenadas desordenadamente de forma a que sempre dá mais ou menos certo e meu olho não é meu corpo todo. Meu corpo não é minha cabeça mas acho que sempre estou morando dentro dela sendo meu corpo resto o que me carrega por aí e meu pé não pensa. Eu penso com a cabeça e ela não mora no meu pé. Mas meu pé responde a tudo o que minha cabeça dele recebe ou seja eu nem sou tão humana mesmo sou uma teia. A aranha que me faz sou eu que invento mas ainda assim quando durmo não sei mesmo se estou viva não tenho essa certeza. Se não estou acordada quando durmo quer dizer que morri e esqueci porque me entreguei tanto ao sono que ele pode me carregar para onde quiser. Eu quero dormir mais do que tudo pois lá não preciso pagar contas. Mas acordada me lembro de tudo apesar de quase nada mas ainda assim a dureza me faz encontrar uma pequena fresta de saída para a luz do que não consigo decifrar. A cada instante busco o facho que dela chega mas sabendo que se olhar por muito tempo talvez eu nem consiga mais fechar o olho e meu olho não pensa. Quem pensa sou algo que acha que pensa mas no fundo só existo como uma situação coincidente. Que coincidência, existir assim! A melhor explicação que poderia ter é o mistério mas ainda assim sou teimosa quero provar um pouco do mel ganancioso da sabedoria eterna do ofuscar de uma roupa que um dia não vou mais vestir porque quando pensei já não sou mais. Vivo assim me escapando pelo labirinto do total desconhecido e isso sim é uma delícia, me perder mais do que tudo não saber mais do que nada. Preciso dormir. 

Espectro

Chamar, assim, em voz alta

Os fantasmas que o silêncio anuncia

Estampar na noite uma dúvida 

De não saber definir contornos


Sozinha no alto do olho não me vejo 

Espelhada no que pode ser um “sim”

Também tenho minhas armas

Com meu exército interminável 

E os espectros de armaduras solenes

Apesar de não estar em guerra

Apesar de não morrer

Estou  sangrando 








quinta-feira, 8 de maio de 2025

Saco

Psicanalistas e o fetiche de ser ignorado
Os sonhos e a tradução do que o corpo cala
A hesitação e a culpa por trás da malícia
O crime de se deixar existir sem medo
O sono e a vontade de não acordar
A vida comida por um não-sei-o-quê de vontade suprema
Estou dentro desse mesmo saco
Mergulhada na farinha 

Desimportância

Na minha frente
A imagem do que não preciso
Um olhar perdido, incerto só na frieza de se exigir demais
"Tem pessoas que parecem vazias" - tem
Quem disse isso não fui eu, é só uma ideia, e você também é só uma ideia
Tive várias outro dia mesmo
Sempre tenho, o tempo todo

Hoje achei que estava sonhando
E alguém me sondava por detrás das árvores
Mas não tive medo, o céu estava azul e rosa e o caminho era sempre o mesmo
Viver morrendo que uma hora também vou ter que morrer
Não faz mal
Não me desimporto
Só preciso tirar uma foto, só uma
Do momento em que você achou que não me faria mal - se é que achou
E daquela flor bonita que me levou abduzida
Para um outro instante sem tempo


quarta-feira, 30 de abril de 2025

Fuga

De que fala esse novo medo, a qual grito me expõe? Novo, mas conhecido, me sinto inteira pesada pela terra que me cobre. Aqui ele já esteve, mas eu era outra, então. Tinha ferrugem nos olhos e agora só vejo o que brilha, no escuro abraço forte a vontade de não sentir. O que escrevo não tem final, não fala de mim, mas tenho a fome de mundo de quem escapa pelas laterais, fugindo da miséria de uma razão descabida. Desavisada, sou acossada por ele em formatos geométricos e distintos, cores vibrantes, o medo numa cápsula de vitamina. O medo incorporado à rotina e dentro dele a coragem de admitir que sou tão pequena. Uma pequena angústia, uma minúscula dose de veneno. Tão mortal quanto um sonho triste. Nesse sonho, acordo sempre com um medo exato, uma vontade de correr pra longe do que me enxerga com uma certeza abrupta. Não quero ser entendida. Quero fugir para dentro do medo e lá ficar cega, sem poder ver o que me assusta. 

segunda-feira, 28 de abril de 2025

Memória

Vou beber a cor que ilustra a minha apagada memória

Transfiguradamente me esgueirando entre as pilastras decaídas do não

Afirmo que não sei mais o que me trouxe até aqui

Nem mais para onde iria

Se não fosse o esquecimento



Nos merecemos 

Ausência e o que eu não quero dizer

Estamos de mãos dadas

Caminhando pela praça

Toda poesia pode ser brega

Cafona, inútil

Sem sentido

Eu posso

Ela pode

domingo, 20 de abril de 2025

Sentença

Não posso mais falar do que sou pois fui vista. Flagrada na invenção de olhos que me cortaram ao meio e assim me amarraram ao convencimento de uma felicidade infinita, um deságue inconstante, uma fogueira no meio do oceano, o caos da leveza. O que escondem as palavras que me importunam? Afinal, nem tudo importa, não preciso ouvir todos os conselhos da minha boca amargurada, falo mil idiomas e não entendo nada. A condenação segue a passos largos, só posso ser infinitamente feliz. Minha sentença é oportuna, desejo renunciar aos poderes de ser livre para entristecer? Estou presa e fiel à ideia que fiz da infelicidade fecunda - o atrito que rói e lapida os cantos da minha devassa natureza criativa. Escapulir escorregar, nunca gostei do que é fácil. Mas gosto do descanso - do esquecimento - do conforto de não pensar. 
Se ainda me leio é porque preciso.

Ninho

A queda é sempre ocasional: perigo discreto de me fascinar demais pelo que invento e o medo é um pássaro carnívoro que deglute os sentidos, estou cega e o que me guia é a sensação de gelo entre meus dedos, uma carcaça machucada no centro da calada da noite, persegue meus olhos sempre num voo lento, um ataque mortal, estou presa e as cartas embaralhadas. O que pressinto não pode ser dito. Me agarro ao avesso do que sei, uma aptidão furtiva de mergulhar para fora da boca sem dentes antes de ser entregue a seus filhotes que gritam - desespero por absorver minha pureza, meu sangue cristalino, minha dúvida ardente-azul-amolecida. Eu tenho certezas que são espadas, estão aqui, bem escondidas no punho, arrebato a barriga da ave-noite arranco suas lombrigas penetro em suas penas por dentro pra fora seu ninho é minha casa, agora. Estou de volta e órfã da vida, com fome da carne que não me foi entregue na boca pois estava muito ocupada para comer. 

sexta-feira, 18 de abril de 2025

Anzol

A minha suave angústia, às vezes não é suficiente. Preciso espalhar os ramos da árvore, essa árvore impenetrável do caráter que me extravasa, são meus frutos -  quem posso controlar? Recalcular os rumos do pensamento, o tempo todo, me pescar.  Jogaria o anzol mil vezes se fosse preciso, ainda estou tentando, mas me escapo sempre que algo me atravessa com lentidão azul, uma massa imensa do fascínio a que eu mesma me exponho, sou fanática por testar as probabilidades. Até o sumo preciso extrair, de uma vida esparramada em galhos folhas flores relações paridas ou cortadas por um aço translúcido sem nome, eu me vi por dentro, eu me pari. Sou uma força marrom e verde e estou por dentro de mim. Penso demais, exercito a servidão à negação de tudo, questiono o questionamento no momento em que ele me pinça com garras de rapina e, mesmo assim...me entrego somente ao que me parece lúcido, e lucidez demais também ofusca. De qualquer forma, imprimo no olho do instante o que me cabe ser, sendo percorrida pela seiva do cansaço. Um cansaço de terra. Um peso necessário. Preciso ser aleatória demais, penetrar demais, grudar demais nas paredes limosas do escárnio - eu não rio, porém. Levo tudo muito a sério.

quarta-feira, 16 de abril de 2025

Cartas II

Acordada demais para fechar os olhos na penumbra. Espantada demais para naturalizar uma saudade. Saudade rígida. Rígida demais para amolecer o cansaço, cansaço virando névoa. Não me entrego e renego tal fuga do domínio do presente, me enlevo. Os pés embaixo da terra, lenta, precisa. Preciso dos espelhos da tua retina. Me atiro na falta que eu mesma me faço, preciso de mim para não existir dentro. Caminho sobre as pedras quentes da tua angústia e tenho medo de ser fim. Não quero teu desgosto com sabor de rícino, rotina sem direção, desencontros sublimes e fantásticos. Desencontrar é romântico demais.

Te escrevo uma carta sem final.

Nela te digo: quero te prender no limiar do abismo, entre a certeza e dúvida doces, sempre e total. Quero trêmulo te permanecer, faísca - te desonero da culpa de escolher, do mal de me entregar volátil. Você aguenta o meu amor? Sou pesada vagarosa, como um sol nascendo e te acompanho sempre de longe, lá onde meus olhos já não são infernos e nem boca que exista para me transpassar. Transpareço (lívida) a divina impressão de te agarrar, pendurada num arame e, de lá, te absorvo nas minhas profundezas sem preparo. Te amparo, como aranha bruta que provoca a sua presa. Já é de manhã, estou viva. 


segunda-feira, 14 de abril de 2025

Estandarte

Quero pensar sobre a reinvenção da memória. É assim, pois lembrar sempre faz nascer um novo passado.  Revisito os quartos múltiplos da minha estrutura, o que penso ser dela feito nunca é alcançável com um olhar, por mais atento. Olho, então, com uma mirada displicente, passando rápido, quase fingindo não saber do que se trata - posso fazer da indiferença meu álibi perfeito. Volto e já estou em outro passado, nada é como realmente foi. O que era ficou congelado na lente de uma pessoa que já não sou, e não há resgate para o salto da vida. Vozes me chamando, as cenas retornam sempre com uma luz diferente. O enquadramento é outro, me vejo de fora em azul acinzentado com os sons que eu mesma criei para preencher os buracos, a memória tem lacunas profundas como a noite. O passado é tão certo que posso criá-lo a meu bel prazer. Posso adaptá-lo, inventar a narrativa, saquear o que desprezo e, ainda assim, jamais ser culpada por isso. Mergulho um pouco mais e já estou em cena, sabendo o que se passa na minha cabeça, nem eu mesma daquela época sabia. Tem lembranças que são delírios, apenas. Essas são as mais suculentas, não mudam e a elas me agarro como a um estandarte de tudo o que me dá sentido. A loucura é o que me sustenta, as memórias do delírio, uma febre altíssima, coisas muito pequenas ao lado de coisas gigantes. Mas não só isso: as sutilezas de uma loucura que me vive, quando não sonho, e só sei que ali sempre estiveram, até antes de eu nascer. Eu nasci e já era a loucura.

sábado, 12 de abril de 2025

Som

Pra que servem tantas palavras

Se na calada da noite é onde mais ouço o estardalhaço das estrelas?


Me cubro de silêncio quando a linguagem faz frio


terça-feira, 8 de abril de 2025

Uma tela invisível

Regalia de sentidos, explico constantemente o que não grito. Fugindo assim para dentro pego um caminho estreito, uma estrada de plástico, um carrinho sem freio, a lama se ocupa das flores e o que vejo já é o que sinto. O cenário é meio cinza-vermelho-cianítico, nele estou sempre fiel grudada às paredes da não-lógica, num comboio paralítico, um saveiro semi-crítico, um morteiro quase artístico. Comigo a caravana de nus e pés raquíticos, um céu de palavras beges com furos pretos e frutos cítricos, mas ali a terra é plana e eu imersa no infinito. Virada assim para cima vejo que estou aprisionada, ali eu fico, quem me olha e me fia é a mente que sempre alcanço e nunca evito. Por dentro dela, abóbada, me fito, e lá fora sou sempre o calor da madrugada ou o prédio onde não habito. 

Cartas

É vermelha a tentativa de suprir e fechar os buracos da dúvida
Eu escrevo para saber o que não entendo quando fecho os olhos
E não entendo nada
Não quero mais entender

A dobra eterna de uma flexibilidade salgada - tudo me ocupa, vou embora com o medo
E fico enquanto salto de um estado acrílico para outro, persisto que ainda isto acaba
E não, não termina
Que enquanto me concentro em validar o que sinto, me perco
E aí a palavra sai sem querer 
Por que assim eu sempre quis

Calei o impulso de ser perfeita
E gritei manso o que te vejo
Audível, cristalino
O que o olho renega arregala e teme
Que seja visto assim em plena luz, uma mirada constante
Para fora, para o lado
Aquela fuga incompleta e cada vez menos ânsia
O sossego da fala que ilude a certeza
A paciência de me ver
O desconcerto de poder
Com tamanha insistência e desatino
Perseguir o desejo, o desabrigo
Acabar em silêncio, como um livro.












domingo, 6 de abril de 2025

Atrito

Um modelo pra seguir, ela logo pensava. Uma forma de contato com seus ossos, estúpida camada de certezas. O osso é um tecido tão denso estruturado, uma teia de minérios e a vida mesma, ele não é plástico. Em estando na terra, volta como se nada - de forma muito lenta, abnormal - certo mesmo são as pessoas. E as pessoas são erradas sempre, uma forma de invenção. Castelos de cartas, emaranhados móveis da moral e do bom convívio -  a gente precisa dos outros e os outros são obstáculos (se viver fosse lisura a gente escorregava pra eternidade). Mas, voltando aos ossos, eles não têm liso, são feitos de buracos. E é o oco quem carrega tão cheia coisa de se mover. Aí eu caio em perigo: dependendo do olhar, posso ser dura ou flexível. Não sigo as regras mas me atrito conforme a palavra, semovente e sub-reptícia fugindo da estreiteza e do medo. Ou encarando mesmo de cara na frente seguindo a recompensa. Pois bem, me incomoda a ligeira fraqueza das articulações, o medo é estar enjaulada na extensão infinita de uma dobra sem volta. Algo me diz que preciso confiar na inteligência do corpo.

Urgência

Exigir demais do momento: que ele transborde a própria experiência.

Breu

Tentar ver no escuro, tateando versões do impossível. 

Gosto de falar do impossível, ele sabe a futuro.

...

Na caverna, sob a luz minguada da ideia

Se pode ver o que não sabem os olhos: a minúcia da pele.

...

Por quem os sentidos se desdobram?



quinta-feira, 3 de abril de 2025

Colírio

Um dia, me fiz bem pequenininha. Assim, pude caber em gotas, ser derramada em doses homeopáticas no teu olhar gigante. Lá dentro, desintegrada, juntava os fios cortados de quando a boca se fecha em pedidos e súplicas - fique, aqui vai ser bom, aqui eu te mereço, aqui já estivemos em tempos antes de nascer, aqui inteiros. Por dentro da retina naveguei, descobrindo no meu reflexo de lágrima o que nos afasta e nos reprime na inocência de gostar: apegos, sentidos, suspiros, saudades. Ali uma vez já tinha sido, mas seria novamente tanto e quanto o olho precisasse, o incessante piscar de cinema movediço mas na verdade está parado - o filme todo uma grande imagem estática. Quem assiste não quer saber do meu tamanho, da minha idade, de como cheguei até ali - só quer a certeza de que ainda mergulho ou trafego ou respiro por entre a fina camada líquida esperando a hora de chorar - choro sempre que o corpo me inflama, desejo ser grande de novo, então. Fui crescendo e por dentro sentia um transferir de almas, já não era mais átomo, Deus, partícula, movimento. Já era você de novo, sentindo através do meu olho a sensação de goteira, meu olho embebido na mágica. Era eu quem me olhava de longe. 




terça-feira, 1 de abril de 2025

Rocha

PACTOS (ou a ejecção para fora da atmosfera)

A ficção alterada da realidade, a atração pelo possivelmente insubstituível. Naturalmente me esgueiro entre os totens que a mente cria, aqueles de pessoas, aqueles de prováveis mentes, aqueles de olhos e ouvidos despertos e dispostos a queimar na brasa cada movimento, cada pensamento vivo, cada passo trocado com o chão. Cada palavra, também, por que não? Dentre seus corpos imóveis e petrificados pressinto um aroma de vício, um café amargo, a delícia de mergulhar na própria seiva ácida da razão e de lá retirar entulhos magníficos: uma certeza, uma teoria, uma catarse. Um vão - dentro do veio da rocha preciosa do silêncio me escondo tal como a droga perfumada da malícia - ali me mantenho só pela força do hábito, até alguém me chutar o traseiro e chamar o meu nome falso: venha pra fora, perdão! Nada é tão complexo que não possa ser silenciado, então pressinto que também posso ser expelida de vez em quando do mundo, lançada ao espaço numa tentativa de alterar o rumo do universo com a minha incrível força gravitacional. Não tenho tempo. Preciso me manter ativa, viva, compacta no meu ar habitavelmente salubre, não posso com a sombra da dúvida. Não posso comigo, tenho que ser pra fora - já me basta a crueza de uma vida partida e um nada perdido pra aparentar ser inteira. Sem meu ato certeiro, meu único pacto seria com o tempo, e o tempo não tem parceria com quem não se acaba. 

NOTAS SOBRE O FIM QUE NÃO CHEGOU

O meteoro do caos, penso que o centro do impacto pode ser onde a trinca desdobra o ar que corrói o futuro - ali onde nada toca nem quando se sonha acordado ou dormindo. No passado a gente sofre, no presente a gente dói o passado-queloide de eras, as dores incríveis, translúcidas - as mil dores a granel de um sofrimento perpétuo. A roda gira, então? A gente troca de roupa e a dor segue lá. A gente lava o rosto e a dor segue lá. Ali, bem debaixo de um suspiro aliviado de prazer. Ali, por trás de um sorriso genuíno de excruciante alegria -  o choro é real e eu não sou um robô.

sábado, 29 de março de 2025

Baralho

Oráculo do silêncio - digite sim para: não

Escolha a melhor opção

Dentre os poemas que cabem no bolso de trás da nuca

Assim, te tornarás o sábio mais sábio em profundidades milimetricamente arranjadas pra ferir

Não, eu não quero dizer ferir

Quero dizer, ferrar

Agarrar, autópsia do medo de estar só

Nu - como sempre

O inferno é o limite e o tempo acaba aqui

...

O engano é todo nosso, meu caro porvir

Estamos todos girando, na fortuna roda que gira só pra nos esmagar

E contemplar a obra de sua criação plena dizendo: eu avisei

...

Isto não é um poema, é uma imagem santa

É um carro desgovernado

É uma taça de sangue pronta pra transbordar.


domingo, 23 de março de 2025

Me acusaram: POETA!

e foi o melhor presente que já me deram.

Aranha

Mergulhar no passado, o reflexo translúcido da lucidez inocente
Minha estrutura é de palavra
A linguagem é meu porto seguro
Edifico contornos ao passo que destruo as certezas

Sim, eu vou reescrever a minha história
Eu vou rever os meus pensamentos
Como sempre, a todo instante
Duvidando como artesanato de aranha
Pois só na teia da letra sou presa
E como nunca me senti tão livre

terça-feira, 18 de março de 2025

Descoincidências

Espremidos na certeza dos muros que se fecham
Um bate, outro apanha, ninguém perde e ninguém aprende
Ainda assim, gosto da gastura dos encontros que se arranjam
Gosto de lembrar do desencarne da poesia
Talvez seja essa, nossa grande história
Olhar de longe o que jamais coincide



domingo, 16 de março de 2025

Tobogã

Sem saber o que faço, escrevo. Aí é que eu me vejo realmente com essa tristeza toda essa tristeza alegre esse final sem fim. Sempre no meio, é onde fico e sempre titubeio. Tudo bem, ninguém mais espera nada, sou planta rasteira e me alimento do resto, tenho medo de olhar pra cima, tenho medo da cura, tenho medo dos símbolos que exageram a vista. A vista exagerada, gigante, a gente acha que viu mas achou errado. É bom achar errado, também. É bom que digam - você é triste - pra gente ser feliz sem medo. E depois ser triste de novo. Tipo um tobogã, a gente andando em espirais, a gente sendo gente e esquecendo que existe. É bom, também.

Viaja demais na própria ideia de ser intocável.

Esfinge

Eu era realmente tudo aquilo que a gente sonhava: invisível
E você é quem dormia e eu tentava me acordar sonhando
De longe, as coisas parecem parecidas
Mas não passam de enigmas, a mente não sabe distinguir futuro
Assim como o carro passa na rua ruidoso e eu acho que é o fim do mundo
Vou me proteger até o fim daquela coisa triste que parecia nos achar
Pois eu era realmente aquilo tudo: nada demais












domingo, 9 de março de 2025

Antídoto

Um dia me perguntaram
O que é o amor?
E eu não disse: o amor é um vento
Que passa quando a gente não está olhando
E leva o que a gente não está segurando

Eu não disse
O amor é a voz que eu não ouvi
Quando não estava dormindo
Porque estava gritando

Eu vivo não dizendo
Que o amor
É a bagunça da sala
A preguiça que estrala
E o silêncio que fala

Eu não disse
Eu jamais direi
Do amor eu não sei
Do amor me cansei

De tudo o que eu não disse
Um dia eu só quis dizer
O amor...
O amor é contraste.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Era algo sobre a água, sobre ser água

Você não lembra?

Cinema

O susto inevitável de seguir a vida sem vida
A inconformidade, então é assim que acaba?
De querer explicar, querer gritar, querer voltar a todo custo
O grito surdo de acordar vizinho, o rodopio

O teto, a lâmpada quase apagada - então ela fica brilhando a noite inteira?
O remorso de ser incontrolável, o susto, novamente

Eu lembro quando você recitou aquele poema nosso, na tela branca no escuro, água por todos os lados inclusive dentro da gente por dentro
As gotas formavam a moldura da tua voz
E eu ouvia e me sabia dormindo, mas queria acordar pra te avisar que você tem um novo poema, precisa escrever e eu preciso ouvir
Tudo bem, a palavra também serve ao esquecimento, ao inconsciente, a tudo o que eu não posso tocar

Essa noite eu morri, e foi preto e branco.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

 Sem limites, a vida impõe sua memória

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Passado o terror de não acreditar em você, na tua existência

Passo a temer o pior dos males: o teu sumiço

Eu já escrevi e foi bom

Já tive essa ignorância


Inventário do sono

Não sou eu quem bate à sua porta com seus tratamentos formais e suas quantidades pesos e medidas, tudo exato

Tudo em seu lugar

Crescer, não importa a dor

Sentir, não importa o peso da vida

Tudo pode ser sentido

E eu sigo aqui, engessada na formal ideia que fiz de meu caos

No absurdo intento de revogar o poder do destino

Na falta de crédito que dou aos meus pequenos passos

Tão ínfimos, pequeno risco

Só um traço por volta da sombra das minhas mágoas, angústias

Afinal, pra que tanta angústia?

No fim era o caos, o medo, o sono

E tudo se voltava para o mesmo local, o medo, o sono

A fome de sentir o mundo por dentro, a pressa de contar vantagem sobre o tempo

Nada pode ser tão implacável, a terra come, a água leva

São só palavras, mas são palavras.