quarta-feira, 30 de abril de 2025

Fuga

De que fala esse novo medo, a qual grito me expõe? Novo, mas conhecido, me sinto inteira pesada pela terra que me cobre. Aqui ele já esteve, mas eu era outra, então. Tinha ferrugem nos olhos e agora só vejo o que brilha, no escuro abraço forte a vontade de não sentir. O que escrevo não tem final, não fala de mim, mas tenho a fome de mundo de quem escapa pelas laterais, fugindo da miséria de uma razão descabida. Desavisada, sou acossada por ele em formatos geométricos e distintos, cores vibrantes, o medo numa cápsula de vitamina. O medo incorporado à rotina e dentro dele a coragem de admitir que sou tão pequena. Uma pequena angústia, uma minúscula dose de veneno. Tão mortal quanto um sonho triste. Nesse sonho, acordo sempre com um medo exato, uma vontade de correr pra longe do que me enxerga com uma certeza abrupta. Não quero ser entendida. Quero fugir para dentro do medo e lá ficar cega, sem poder ver o que me assusta. 

segunda-feira, 28 de abril de 2025

Memória

Vou beber a cor que ilustra a minha apagada memória

Transfiguradamente me esgueirando entre as pilastras decaídas do não

Afirmo que não sei mais o que me trouxe até aqui

Nem mais para onde iria

Se não fosse o esquecimento



Nos merecemos 

Ausência e o que eu não quero dizer

Estamos de mãos dadas

Caminhando pela praça

Toda poesia pode ser brega

Cafona, inútil

Sem sentido

Eu posso

Ela pode

domingo, 20 de abril de 2025

Sentença

Não posso mais falar do que sou pois fui vista. Flagrada na invenção de olhos que me cortaram ao meio e assim me amarraram ao convencimento de uma felicidade infinita, um deságue inconstante, uma fogueira no meio do oceano, o caos da leveza. O que escondem as palavras que me importunam? Afinal, nem tudo importa, não preciso ouvir todos os conselhos da minha boca amargurada, falo mil idiomas e não entendo nada. A condenação segue a passos largos, só posso ser infinitamente feliz. Minha sentença é oportuna, desejo renunciar aos poderes de ser livre para entristecer? Estou presa e fiel à ideia que fiz da infelicidade fecunda - o atrito que rói e lapida os cantos da minha devassa natureza criativa. Escapulir escorregar, nunca gostei do que é fácil. Mas gosto do descanso - do esquecimento - do conforto de não pensar. 
Se ainda me leio é porque preciso.

Ninho

A queda é sempre ocasional: perigo discreto de me fascinar demais pelo que invento e o medo é um pássaro carnívoro que deglute os sentidos, estou cega e o que me guia é a sensação de gelo entre meus dedos, uma carcaça machucada no centro da calada da noite, persegue meus olhos sempre num voo lento, um ataque mortal, estou presa e as cartas embaralhadas. O que pressinto não pode ser dito. Me agarro ao avesso do que sei, uma aptidão furtiva de mergulhar para fora da boca sem dentes antes de ser entregue a seus filhotes que gritam - desespero por absorver minha pureza, meu sangue cristalino, minha dúvida ardente-azul-amolecida. Eu tenho certezas que são espadas, estão aqui, bem escondidas no punho, arrebato a barriga da ave-noite arranco suas lombrigas penetro em suas penas por dentro pra fora seu ninho é minha casa, agora. Estou de volta e órfã da vida, com fome da carne que não me foi entregue na boca pois estava muito ocupada para comer. 

sexta-feira, 18 de abril de 2025

Anzol

A minha suave angústia, às vezes não é suficiente. Preciso espalhar os ramos da árvore, essa árvore impenetrável do caráter que me extravasa, são meus frutos -  quem posso controlar? Recalcular os rumos do pensamento, o tempo todo, me pescar.  Jogaria o anzol mil vezes se fosse preciso, ainda estou tentando, mas me escapo sempre que algo me atravessa com lentidão azul, uma massa imensa do fascínio a que eu mesma me exponho, sou fanática por testar as probabilidades. Até o sumo preciso extrair, de uma vida esparramada em galhos folhas flores relações paridas ou cortadas por um aço translúcido sem nome, eu me vi por dentro, eu me pari. Sou uma força marrom e verde e estou por dentro de mim. Penso demais, exercito a servidão à negação de tudo, questiono o questionamento no momento em que ele me pinça com garras de rapina e, mesmo assim...me entrego somente ao que me parece lúcido, e lucidez demais também ofusca. De qualquer forma, imprimo no olho do instante o que me cabe ser, sendo percorrida pela seiva do cansaço. Um cansaço de terra. Um peso necessário. Preciso ser aleatória demais, penetrar demais, grudar demais nas paredes limosas do escárnio - eu não rio, porém. Levo tudo muito a sério.

quarta-feira, 16 de abril de 2025

Cartas II

Acordada demais para fechar os olhos na penumbra. Espantada demais para naturalizar uma saudade. Saudade rígida. Rígida demais para amolecer o cansaço, cansaço virando névoa. Não me entrego e renego tal fuga do domínio do presente, me enlevo. Os pés embaixo da terra, lenta, precisa. Preciso dos espelhos da tua retina. Me atiro na falta que eu mesma me faço, preciso de mim para não existir dentro. Caminho sobre as pedras quentes da tua angústia e tenho medo de ser fim. Não quero teu desgosto com sabor de rícino, rotina sem direção, desencontros sublimes e fantásticos. Desencontrar é romântico demais.

Te escrevo uma carta sem final.

Nela te digo: quero te prender no limiar do abismo, entre a certeza e dúvida doces, sempre e total. Quero trêmulo te permanecer, faísca - te desonero da culpa de escolher, do mal de me entregar volátil. Você aguenta o meu amor? Sou pesada vagarosa, como um sol nascendo e te acompanho sempre de longe, lá onde meus olhos já não são infernos e nem boca que exista para me transpassar. Transpareço (lívida) a divina impressão de te agarrar, pendurada num arame e, de lá, te absorvo nas minhas profundezas sem preparo. Te amparo, como aranha bruta que provoca a sua presa. Já é de manhã, estou viva. 


segunda-feira, 14 de abril de 2025

Estandarte

Quero pensar sobre a reinvenção da memória. É assim, pois lembrar sempre faz nascer um novo passado.  Revisito os quartos múltiplos da minha estrutura, o que penso ser dela feito nunca é alcançável com um olhar, por mais atento. Olho, então, com uma mirada displicente, passando rápido, quase fingindo não saber do que se trata - posso fazer da indiferença meu álibi perfeito. Volto e já estou em outro passado, nada é como realmente foi. O que era ficou congelado na lente de uma pessoa que já não sou, e não há resgate para o salto da vida. Vozes me chamando, as cenas retornam sempre com uma luz diferente. O enquadramento é outro, me vejo de fora em azul acinzentado com os sons que eu mesma criei para preencher os buracos, a memória tem lacunas profundas como a noite. O passado é tão certo que posso criá-lo a meu bel prazer. Posso adaptá-lo, inventar a narrativa, saquear o que desprezo e, ainda assim, jamais ser culpada por isso. Mergulho um pouco mais e já estou em cena, sabendo o que se passa na minha cabeça, nem eu mesma daquela época sabia. Tem lembranças que são delírios, apenas. Essas são as mais suculentas, não mudam e a elas me agarro como a um estandarte de tudo o que me dá sentido. A loucura é o que me sustenta, as memórias do delírio, uma febre altíssima, coisas muito pequenas ao lado de coisas gigantes. Mas não só isso: as sutilezas de uma loucura que me vive, quando não sonho, e só sei que ali sempre estiveram, até antes de eu nascer. Eu nasci e já era a loucura.

sábado, 12 de abril de 2025

Som

Pra que servem tantas palavras

Se na calada da noite é onde mais ouço o estardalhaço das estrelas?


Me cubro de silêncio quando a linguagem faz frio


terça-feira, 8 de abril de 2025

Uma tela invisível

Regalia de sentidos, explico constantemente o que não grito. Fugindo assim para dentro pego um caminho estreito, uma estrada de plástico, um carrinho sem freio, a lama se ocupa das flores e o que vejo já é o que sinto. O cenário é meio cinza-vermelho-cianítico, nele estou sempre fiel grudada às paredes da não-lógica, num comboio paralítico, um saveiro semi-crítico, um morteiro quase artístico. Comigo a caravana de nus e pés raquíticos, um céu de palavras beges com furos pretos e frutos cítricos, mas ali a terra é plana e eu imersa no infinito. Virada assim para cima vejo que estou aprisionada, ali eu fico, quem me olha e me fia é a mente que sempre alcanço e nunca evito. Por dentro dela, abóbada, me fito, e lá fora sou sempre o calor da madrugada ou o prédio onde não habito. 

Cartas

É vermelha a tentativa de suprir e fechar os buracos da dúvida
Eu escrevo para saber o que não entendo quando fecho os olhos
E não entendo nada
Não quero mais entender

A dobra eterna de uma flexibilidade salgada - tudo me ocupa, vou embora com o medo
E fico enquanto salto de um estado acrílico para outro, persisto que ainda isto acaba
E não, não termina
Que enquanto me concentro em validar o que sinto, me perco
E aí a palavra sai sem querer 
Por que assim eu sempre quis

Calei o impulso de ser perfeita
E gritei manso o que te vejo
Audível, cristalino
O que o olho renega arregala e teme
Que seja visto assim em plena luz, uma mirada constante
Para fora, para o lado
Aquela fuga incompleta e cada vez menos ânsia
O sossego da fala que ilude a certeza
A paciência de me ver
O desconcerto de poder
Com tamanha insistência e desatino
Perseguir o desejo, o desabrigo
Acabar em silêncio, como um livro.












domingo, 6 de abril de 2025

Atrito

Um modelo pra seguir, ela logo pensava. Uma forma de contato com seus ossos, estúpida camada de certezas. O osso é um tecido tão denso estruturado, uma teia de minérios e a vida mesma, ele não é plástico. Em estando na terra, volta como se nada - de forma muito lenta, abnormal - certo mesmo são as pessoas. E as pessoas são erradas sempre, uma forma de invenção. Castelos de cartas, emaranhados móveis da moral e do bom convívio -  a gente precisa dos outros e os outros são obstáculos (se viver fosse lisura a gente escorregava pra eternidade). Mas, voltando aos ossos, eles não têm liso, são feitos de buracos. E é o oco quem carrega tão cheia coisa de se mover. Aí eu caio em perigo: dependendo do olhar, posso ser dura ou flexível. Não sigo as regras mas me atrito conforme a palavra, semovente e sub-reptícia fugindo da estreiteza e do medo. Ou encarando mesmo de cara na frente seguindo a recompensa. Pois bem, me incomoda a ligeira fraqueza das articulações, o medo é estar enjaulada na extensão infinita de uma dobra sem volta. Algo me diz que preciso confiar na inteligência do corpo.

Urgência

Exigir demais do momento: que ele transborde a própria experiência.

Breu

Tentar ver no escuro, tateando versões do impossível. 

Gosto de falar do impossível, ele sabe a futuro.

...

Na caverna, sob a luz minguada da ideia

Se pode ver o que não sabem os olhos: a minúcia da pele.

...

Por quem os sentidos se desdobram?



quinta-feira, 3 de abril de 2025

Colírio

Um dia, me fiz bem pequenininha. Assim, pude caber em gotas, ser derramada em doses homeopáticas no teu olhar gigante. Lá dentro, desintegrada, juntava os fios cortados de quando a boca se fecha em pedidos e súplicas - fique, aqui vai ser bom, aqui eu te mereço, aqui já estivemos em tempos antes de nascer, aqui inteiros. Por dentro da retina naveguei, descobrindo no meu reflexo de lágrima o que nos afasta e nos reprime na inocência de gostar: apegos, sentidos, suspiros, saudades. Ali uma vez já tinha sido, mas seria novamente tanto e quanto o olho precisasse, o incessante piscar de cinema movediço mas na verdade está parado - o filme todo uma grande imagem estática. Quem assiste não quer saber do meu tamanho, da minha idade, de como cheguei até ali - só quer a certeza de que ainda mergulho ou trafego ou respiro por entre a fina camada líquida esperando a hora de chorar - choro sempre que o corpo me inflama, desejo ser grande de novo, então. Fui crescendo e por dentro sentia um transferir de almas, já não era mais átomo, Deus, partícula, movimento. Já era você de novo, sentindo através do meu olho a sensação de goteira, meu olho embebido na mágica. Era eu quem me olhava de longe. 




terça-feira, 1 de abril de 2025

Rocha

PACTOS (ou a ejecção para fora da atmosfera)

A ficção alterada da realidade, a atração pelo possivelmente insubstituível. Naturalmente me esgueiro entre os totens que a mente cria, aqueles de pessoas, aqueles de prováveis mentes, aqueles de olhos e ouvidos despertos e dispostos a queimar na brasa cada movimento, cada pensamento vivo, cada passo trocado com o chão. Cada palavra, também, por que não? Dentre seus corpos imóveis e petrificados pressinto um aroma de vício, um café amargo, a delícia de mergulhar na própria seiva ácida da razão e de lá retirar entulhos magníficos: uma certeza, uma teoria, uma catarse. Um vão - dentro do veio da rocha preciosa do silêncio me escondo tal como a droga perfumada da malícia - ali me mantenho só pela força do hábito, até alguém me chutar o traseiro e chamar o meu nome falso: venha pra fora, perdão! Nada é tão complexo que não possa ser silenciado, então pressinto que também posso ser expelida de vez em quando do mundo, lançada ao espaço numa tentativa de alterar o rumo do universo com a minha incrível força gravitacional. Não tenho tempo. Preciso me manter ativa, viva, compacta no meu ar habitavelmente salubre, não posso com a sombra da dúvida. Não posso comigo, tenho que ser pra fora - já me basta a crueza de uma vida partida e um nada perdido pra aparentar ser inteira. Sem meu ato certeiro, meu único pacto seria com o tempo, e o tempo não tem parceria com quem não se acaba. 

NOTAS SOBRE O FIM QUE NÃO CHEGOU

O meteoro do caos, penso que o centro do impacto pode ser onde a trinca desdobra o ar que corrói o futuro - ali onde nada toca nem quando se sonha acordado ou dormindo. No passado a gente sofre, no presente a gente dói o passado-queloide de eras, as dores incríveis, translúcidas - as mil dores a granel de um sofrimento perpétuo. A roda gira, então? A gente troca de roupa e a dor segue lá. A gente lava o rosto e a dor segue lá. Ali, bem debaixo de um suspiro aliviado de prazer. Ali, por trás de um sorriso genuíno de excruciante alegria -  o choro é real e eu não sou um robô.