segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Jato

E se eu inventar agora o que estou pensando para depois não saber o quanto fui estúpida em achar que não deveria retornar ao precipício do qual nunca me atirei e ter em minhas mãos todas as ondas de felicidade do mundo? Felicidade às vezes é uma coisa banal que precisa de gente pra acabar e tempo pra ser percebida. Se eu não gritar aqui não grito, mas tenho um medo gigante que me esmaga praticamente o tempo todo, algo como uma angústia, se é que isso pode se configurar uma grande angústia, só angústia mesmo de existir, isso é demais pra mim. Tudo é muito grande e me sinto minúscula numa bolinha de novelo de lã bem pequenininha, dentro de uma gaveta carcomida pelo tempo e pelo sal desse mar inóspito. O ar é muito fino para me limitar então eu preciso de som. Eu preciso de barulho, ruídos muito altos que me façam esquecer que sou ilimitada. Ruídos e uma vertiginosa realidade fosforescente e brilhante, piscando na minha cara com um jeito de alerta de terremoto: aqui tudo nasce e morre e será esquecido. Aqui, novamente aqui, correndo aquele enorme perigo e sendo mil vezes a mesma repetição, mil vezes um espelho quebrado em mil, mil invenções e quase o mesmo tanto de certezas pois também preciso sobreviver. O mesmo jato que me trouxe à terra me retira aqui e ali em palavras e pensamentos e sons que me espalham, vou deixando minhas células por aí enquanto o bafo quente do infinito me revela a grande revelação sobre a minha grande ignorância. Afinal, não saber tudo pode ser uma grande vantagem, ele me diz. E some em luminosos projéteis trans etéreos que voltam para dentro de mim pelo furo do topo da minha cabeça. Já engolidos pelo meu cérebro transbordam pelo plasma e me fazem dançar sozinha no meio da sala, eu, que já fui aquele pano úmido tentando secar as mágoas do meu reflexo e agora sou só a brisa que invade a casa e me faz lembrar que uma vez achei que a parede estivesse caindo. Era só um caminhão passando pela rua que arrastou os fios e imitou uma catástrofe. 
Mas era tudo mentirinha. Eu inventei.

domingo, 26 de outubro de 2025

Atenção

Aqui tenho a multidão caótica que disfarça seu olhar em dedos tecendo novas formas de me ferir. Aqui o amor que justifica uma fuga alucinada. Aqui de fato a fuga pois não sei lidar com elogios. Aqui o susto automático ao me ver numa realidade tão enorme quanto um sonho. Aqui o salto enigmático. Aqui onde não estive e me arrependi. Aqui sigo correndo descalça pela Marechal. Aqui quem me olha e me evita. Aqui traindo o meu próprio desgosto. Aqui saltando dois degraus. Aqui, pequena e imoral. Aqui, raivosa e visceral. Aqui, intranquila, incógnita, inconteste. Um perigo.

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Pano

Logo ela falando de amor profundo

Amor verdadeiro logo ela

Aquela que se perdeu

E não sente mais pó poeira por debaixo dos olhos

Apenas um cortante dialeto luminoso: a faca da língua no chão da sala

O pano passando molhado entre os dedos

Enxuga esse fluído doce que te sangrou, querida

Enxerga que nem sempre o brilho é luz, quase sempre água

E o que reflete nela é só mesmo ela, aquela mesma

Que não fala e não faz e não sabe

Que de amor só reflexo desdobra

E de verdade só a própria aura celebra



Aquário

Quando a você me entrego

Saiba, meu amor, que é a mim que me dou inteira

E quanto mais a mim me ofereço de alma e corpo

Mais livre sou para te amar profundamente

Quando digo "profundeza" estou falando do meu, do nosso mar

Aquele incógnito onde ainda pretendo mergulhar

Um mar gigante para um dia claro, meu bem

Beba tudo, vai.

Janelas

Para mim, toda a fúria 

Para meus olhos, cada paisagem apressada da janela deste trem desgovernado

Ainda no desastre, tenho tempo de admirar a beleza na explosão