sábado, 17 de dezembro de 2011
Um dia comum - I
Seria um dia como qualquer outro. Ela me despertaria com um beijo no rosto e eu, em estado de semi-lucidez, responderia ao beijo com um grunhido tranquilo, correspondente a um "eu te amo" ou a um "aprecio o fato de você ser minha mulher por tantos anos". Ainda na cama, recostando o travesseiro no espaldar, ela sentaria em posição confortável e acenderia o abajour, pois às 6:45 da manhã o quarto permanece sempre numa penumbra indecisa mesclada à luz que supera a barreira de grossas cortinas. Abrindo o caderno de capa de couro, procuraria o lápis que sempre mantém ao alcance, no criado-mudo e, durante os cinco minutos seguintes, dedicar-se-ia com afinco à nobre tarefa de anotar o último de seus incríveis sonhos. Sim, porque ela sonhava muito, tanto que nunca conseguia condensar em linhas de raciocínio inteligíveis todas as oníricas paisagens e situações pelas quais passava durante a noite, reconhecendo pessoas de seu convívio no escritório, atores de novelas, amigos, parentes e até mesmo eu, quase sempre dotado de algum elemento bizarro. Digo isso porque me inquietava a forma como normalmente descrevia minhas aparições em suas fantásticas histórias, ora transfigurado em coelho diabólico ou portando uma cabeça de bode, ora como o marido comum, com o detalhe de estar totalmente nu e, pasmem, eunuco. Após esmiuçar todos os detalhes de sua memória altamente treinada, sairia da cama e penduraria a camisola de seda cor-de-rosa no encosto da cadeira, iria até o banheiro e abriria o chuveiro. Ainda fria, a água lhe tocaria a pele e seus pêlos da nuca ficariam eriçados, como quando ela entra numa piscina ou no mar. Eu sempre achei engraçado os pelinhos se alterarem dessa maneira, sendo que mais de uma vez ela afirmara não ter medo das baixas temperaturas. Celina sempre me criticava por eu, palavras suas, "gravar feito uma máquina registradora" todos os detalhes efêmeros de sua intimidade. A alguns, por mais insignificantes que pudessem ser e talvez graças a uma sensualidade inconsciente, ela atribuia máxima importância, assumindo uma postura infantil ao revelá-los e, por quê não dizer, transformando-os em coisas impessoais, como se o simples ato de descrevê-los não revelasse uma face de sua personalidade. Com alguma intenção obscura que não posso compreender, eu memorizava cada informação exposta aos meus atentos ouvidos, quanto mais íntima, melhor. Em contrapartida, ela se sentia muito observada, e isso a incomodava quando esta minha "obsessão" não lhe convinha. Após o longo banho, ela abriria o box e, na ponta dos pés, apanharia a toalha da parte superior do armário, abafaria o corpo todo e, pouco a pouco, as gotas parariam de escorrer por seu corpo, a seguir viria o creme, que lhe daria um ar condizente com a fresca manhã. Seria um ótimo dia, como qualquer outro, pois os dias naqueles dias eram quadros de um mesmo rolo de filme apenas diferenciados pelos sutis movimentos da idade. Jamais alguém poderia imaginar que nossas vidas, cômicas ou dramáticas, pudessem extrapolar a tela e saltar para a realidade, tão perfeitamente imperfeitas, planejadas nos mínimos detalhes.
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Aguardo ansioso pela parte II!
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