sexta-feira, 16 de abril de 2010

Para ver

Um pombo-correio me trouxe a notícia de que você estaria na cidade em poucos dias.

Para te receber, fiz uma faixa em preto-e-branco, um buquê com cravos do meu caixão, uma escultura de unhas roídas e remorsos milagrosamente desenterrados. Preparei uma sopa de pedras e rosas, espalhei perfumes sufocantes no pescoço, enrolei uma echarpe nos pulsos para disfarçar. Desafinei propositalmente todos os violinos da região para que, quando tocados, tua fina audição não fosse mais que um pesado fardo. Joguei sal no chão, escondi morcegos atrás da tua porta. Esperei a tua chegada com dez facas na mão, estiletes e uma tesoura.

Esperei...e eis que chega o teu dia.

Quando te vi, mil carros passaram por cima de mim. Caíram os muros, caíram as pontes, caiu o helicóptero que sobrevoava. Caiu uma máscara, mais outra, e outra mais...todas as músicas tocaram ao mesmo tempo e todos os sinos badalaram. Todas as emas gemeram, todos os sabiás cantaram. As luzes dos faróis piscaram em ritmo alucinante, os trens soltaram mais fumaça do que o normal, uma fumaça colorida, estranha...tremores de terra aos teus passos lentos, raios de sol descamando a minha pele, feridas abrindo-se incessantemente. Ratos pulando de alegria pelas ruas, gente dançando, flores desabrochando a contragosto do meu orgulho. Era de se esperar, enfim, que tudo mudasse ao toque do seu repentino reaparecimento. E era de se esperar, também, que todas as vontades de odiar a tua presença se voltassem contra mim.

Assim, você me machucou e tornou a me machucar, assim, sendo tão assim. Tentei seguir firme em meus intentos de evitar te olhar nos olhos e, ao falhar, meus olhos se inundaram de uma preguiça insuportável de vingar-me.
E te amei como nunca amei outros olhos.

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