segunda-feira, 14 de abril de 2025

Estandarte

Quero pensar sobre a reinvenção da memória. É assim, pois lembrar sempre faz nascer um novo passado.  Revisito os quartos múltiplos da minha estrutura, o que penso ser dela feito nunca é alcançável com um olhar, por mais atento. Olho, então, com uma mirada displicente, passando rápido, quase fingindo não saber do que se trata - posso fazer da indiferença meu álibi perfeito. Volto e já estou em outro passado, nada é como realmente foi. O que era ficou congelado na lente de uma pessoa que já não sou, e não há resgate para o salto da vida. Vozes me chamando, as cenas retornam sempre com uma luz diferente. O enquadramento é outro, me vejo de fora em azul acinzentado com os sons que eu mesma criei para preencher os buracos, a memória tem lacunas profundas como a noite. O passado é tão certo que posso criá-lo a meu bel prazer. Posso adaptá-lo, inventar a narrativa, saquear o que desprezo e, ainda assim, jamais ser culpada por isso. Mergulho um pouco mais e já estou em cena, sabendo o que se passa na minha cabeça, nem eu mesma daquela época sabia. Tem lembranças que são delírios, apenas. Essas são as mais suculentas, não mudam e a elas me agarro como a um estandarte de tudo o que me dá sentido. A loucura é o que me sustenta, as memórias do delírio, uma febre altíssima, coisas muito pequenas ao lado de coisas gigantes. Mas não só isso: as sutilezas de uma loucura que me vive, quando não sonho, e só sei que ali sempre estiveram, até antes de eu nascer. Eu nasci e já era a loucura.

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